Em julho de 2023, a Volkswagen lançou uma peça publicitária comemorativa de seus 70 anos em que recriou por meio de inteligência artificial a imagem e a voz da cantora Elis Regina, falecida em 1982. Na propaganda, a cantora aparece ao lado de sua filha, Maria Rita, dirigindo uma Kombi e cantando “Como nossos pais”, de Belchior. A propaganda causou grande comoção e conseguiu mexer com o imaginário popular ao “reviver” virtualmente a imagem de uma artista de forte impacto na cultura brasileira cuja história e a obra atravessaram gerações.
Mais do que isso, a propaganda tocou em memórias afetivas ao conectar os espectadores com a tragédia familiar que permeia a relação da mãe e da filha ali retratadas: Maria Rita, hoje com 45 anos, tinha apenas 4 quando Elis faleceu, tornando a carga simbólica de vê-las lado a lado ainda mais significativa ao projetar nos espectadores sentimentos vários como nostalgia e indagações de como teria sido a relação de ambas caso tivessem tido mais tempo juntas. Ao tocar em temas como memória, legado, relações geracionais embalados pela música de fundo que fala exatamente sobre isso, a marca tentou reforçar os seus próprios vínculos com sua história no Brasil.
Do ponto de vista de estratégia publicitária, o vice-presidente de marketing da Volks, em entrevista à Forbes, destacou o sucesso da campanha: “aumento de 120% nas buscas por ‘VW’ no Google; 5 dos 10 tópicos mais comentados no Twitter; o 1º lugar no Google Trends na história da marca e 1º lugar nos vídeos em alta no Youtube”. Todavia, se por um lado a propaganda trouxe toda a comoção, refletida inclusive no sucesso numérico mencionado, por outro lado levantou sérias questões éticas.
Isto porque dispõe o Código Civil em seu artigo 20 que a imagem é um direito da personalidade e, como tal, trata-se de um direito intransmissível e irrenunciável (artigo 11), ou seja, não é sujeito à sucessão hereditária (herança). Assim sendo, quais são os limites éticos do uso de imagem de pessoas falecidas, sobretudo em um contexto de avanços cada vez mais rápidos e sofisticados da denominada deepfake (técnica de manipulação de vídeos e áudio falsos que é capaz de recriar pessoas de forma muito real por meio de inteligência artificial)?
Em que pese a Volks ter afirmado que obteve o consentimento dos familiares para produzir a peça publicitária, parte dos críticos ainda aponta uma divergência histórica entre Elis Regina e a Volkswagen, uma vez que a cantora fez oposição à ditadura militar, tendo sido inclusive perseguida durante o regime, enquanto que a Volks cooperou voluntariamente com governo militar delatando funcionários que ficavam sujeitos a prisões ilegais e torturas. A empresa, inclusive, concordou em pagar 36 milhões de reais em indenizações por ter colaborado com a ditadura, revertida em parte para ex-funcionários vítimas das violações. Tudo isto faz questionar ainda mais se Elis Regina teria dado consentimento para o uso de sua imagem pela empresa.
Diante de todas as questões éticas apontadas, o Conselho Nacional de Autorregulação Publicitária (Conar) iniciou uma representação ética contra a Volks e a empresa publicitáriaresponsável questionando justamente os limites do uso da imagem da pessoa falecida e se os herdeiros poderiam ter feito tal autorização. No contexto dessas discussões, já existe atualmente, inclusive, o Projeto de Lei nº 21/2020, denominado “Marco Legal da Inteligência Artificial”, com vistas a estabelecer “fundamentos, princípios e diretrizes para o desenvolvimento e a aplicação da inteligência artificial no Brasil”. Até que as reflexões sobre o tema avancem, estamos prontos para o uso da imagem e da memória pela tecnologia?
Isabel Prates de Oliveira Campos
Professora da Faculdade de Direito de Conselheiro Lafaiete – FDCL
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Escrito por Direito no Alvo, no dia 22/09/2023
Artigos desenvolvidos pelos professores da FDCL. Os textos debatem assuntos da atualidade e que envolvem o mundo jurÃdico.