foto: divulgação
A madrugada enlaçou e aqueceu seu corpo. O frio, estação que ambos amavam, atualizava a solidão, os pés congelados e as costas arrepiadas. Esse tempo anunciava a falta que, mais uma vez, buscava borda e convocava uma despedida.
Ao ligar o rádio, que continuava sendo seu companheiro e namorado, o som que abordou seus ouvidos foi Celso Adolfo: “E nós que nem sabemos quanto nós queremos. Que nem sabemos tudo que queremos. Como é difícil o desejo de amar”.
O dia acordou.
O telefone tocou.
― “Alô?”
― “Oi... difícil falar”.
Silêncio.
― “Estou te ligando para desejar feliz aniversário”.
Em lágrimas, continuou dizendo: “Eu tinha planejado um dia especial, uma festa surpresa. Queria comprar aquele sapato que você tanto queria. Lembra? Eu dizia para você esperar uma promoção, assim daria tempo para que eu mesmo o comprasse”.
Nesse momento, ela se lembrou de um domingo, após um dia juntos, envolvidos nas artes, como era o estilo daquele amor. Sentados na praça, ele pegou sua sandália, virou-a e olhou o solado. Ela pensou que, possivelmente, ele lhe daria um sapato de presente. Seu aniversário seria no mês seguinte e os dias estavam contados para a comemoração.
Contudo, a vida decidiu fazer diferente. Os dois romperam poucas semanas antes. Depois de um desconforto que, hoje, ela considera uma bobagem, os caminhos foram desfeitos e houve uma ruptura nos sentidos dos próximos dias. Sempre é uma bobagem, ela pensava.
O mais difícil de uma separação é o tornar-se estranho um ao outro. De manhã, o nome próprio utilizado para se referir ao outro é "Amor". À noite, um retorno aos nomes de origem.
Inclusive, conjugados pelos sobrenomes, para mostrar indiferença. Poderia ser diferença, ela refletiu.
Quando o telefone tocou, associou o som à palavra "ligação". Esse termo é fundamental em sua vida. Ligar, para ela, sempre foi um ato de amor, de aposta e investimento na vida, no acontecimento, no outro.
Enquanto tocava, ela observava que o nome dele era diferente em seu celular. Antes, um apelido carinhoso, essas coisas que o amor faz na gente. Agora, poucos dias depois, o nome de nascimento. Esse nome que causou tanta admiração nela. Suas iniciais eram parecidas. E foi o início daquele encontro, um acaso, que possibilitou um dos amores mais bonitos que ela já viveu. Pressupunha que seria um dos mais belos até vir o próximo, claro, pois esperar que esse seja o único a levará ao fim.
O fim já aconteceu. Mas o luto ainda se faz diferente e presente. Esse foi o seu presente de aniversário, ela afirmou.
Com muita dificuldade, levantava-se da cama, após ficar minutos pensando nos bons momentos juntos. Isso também é o mais difícil em uma despedida: o acordar. As lembranças, as risadas, o caminhar de mãos dadas e todas as palavras e planos de prosperidade surgem como um espanto. Também como uma dilaceração de uma árvore que estava a adolescer. Abandonar o que ainda não se viveu é um caminho árduo, pois é lidar com futuros que, obviamente, não existem.
Há uma banalidade nesse fato, pois parece semelhante ao que as pessoas vivem quando estão percorrendo um rompimento. Mas ela não quer parecer, muito menos aparecer, pois o luto é uma subjetivação de uma falta-a-ser.
Ela busca o seu ser, principalmente neste mês em celebração da vida, do amor. Junho é um mês especial, pois todo o clima é convidativo para namorar. Há amor e ar no ato de namorar.
Por isso é platônico: essa busca interminável de sentidos e de completude para aquilo que está
esburacado.
Agora, caminhando sozinha pelas fendas de ruas de uma cidade-amor para ambos, tudo ao redor surgiu convidando-a ao passado. Diante do que foi, já não havia o dia de amanhã, muito menos as próximas férias ou a viagem já planejada. Se viu com o instante, o presente.
Era o seu único refúgio e senha para o andar. Segurou o pranto diversas vezes. Perguntou-se se
os casais que andavam nas vias eram honestos com suas causas, como ela foi com os seus
desejos.
Dialogava com o seu desejo todos os dias. Um diálogo para ratificá-lo cotidianamente.
Uma mulher leal ao seu desejo e, portanto, se o seu desejo era viver esse amor, sua aposta foi nesse amor. Mas o amor, esse sentimento que causa e desestabiliza, tornou-se cada vez mais fugaz.
Ao se despedirem aos domingos à noite, diziam um ao outro: "O final de semana foi tão bom. Repleto de artes, tranquilo, com descanso e, principalmente, muito amor". A fugacidade estava nessa despedida. Ao lembrarem dos dias vividos no final de semana, sentiam que o tempo tinha feito o seu caminho de ida.
É claro, os desencontros do cotidiano a levavam a refletir sobre como administrar suas
insatisfações. Definiu que "insatisfação" é uma boa cercania, pois anuncia que o desejo está
pulsante, pedindo-lhe para movimentar-se e construir novos trajetos, trânsitos e direções. Inquietação, ela recordava.
Esse incômodo também a fazia interrogar o porvir, mais uma vez, a penumbra entre passado e futuro que se faziam fantasmas. O presente era encontrá-lo, beijá-lo, sentir seu cheiro e caminhar de mãos dadas.
No cinema, assistiam a um filme com duração de três horas, sempre com os dedos entrelaçados. Riam um para o outro, através do olhar. Ele gostava de apertar as mãos dela, em momentos nos quais ela supunha que havia algum acontecimento que o causava incômodo.
Enrolavam os pés ao cruzarem as pernas. Deitavam a cabeça nos ombros um do outro e sentiam
seus cheiros, envoltos pelos perfumes dos corpos. O cheiro dele era viciante. O perfume ao acordar, de manhã. O aroma depois de um dia de trabalho. A fragrância após um banho demorado, com muito sabonete e cantorias. Em silêncio, ela passava pelo corredor, escutava-o e ria, dava gargalhadas.
Esperava a primeira oportunidade para perguntar: "Você estava falando sozinho?".
Ele dizia, também sorrindo: "Você escutou?".
Escutá-lo era um dos atos mais prazerosos da vida dela. Ele dizia de suas leituras, das obras de arte, do trabalho e das angústias mais profundas que atravessavam a sua existência.
Diferente de outros relacionamentos já vividos, ela notava que a sua escuta se fazia efêmera, sem se envolver, mas atenta aos ditos e não ditos, pelas decisões dele e os caminhos feitos.
Eram amigos, ela sabia.
Riam juntos com muita frequência. Isso foi um dos maiores dons desse amor.
Observadores, gargalhavam sem dizer um ao outro o que lhes causava aquele riso. Também zombavam, fazendo críticas e sarcasmos sobre a vida. Sorriam ao acordar e nos sustos que um dava no outro. Ele ria de madrugada, quando a escutava conversando com seus sonhos.
Inquieta, ela acordava dizendo: "Tive um sonho tão estranho".
Ele perguntava, sempre interessado: "O que sonhou?".
Ela descrevia-o, com poucos detalhes, para associar sozinha.
Fazia parte desse amor uma solidão não dita. Era um deleite, depois de um pesadelo, acordar e abraçá-lo, confirmando aquela segurança que só o amor dá, mas que, contraditoriamente, se perde, perdendo-se em si mesmo.
Havia um combinado, também não dito, de que nunca seria possível elucidar tudo sobre aquela relação. A ausência de esclarecimento era um princípio, mas também um fim. Era uma falta que ambos regiam. Por isso o fim não foi explicado. Hoje, ela se pergunta se é necessário desvendar ou se esse princípio ainda faz parte desse amor, mesmo com as dores que palpitam nos corpos desses namorados.
“Não há nada melhor do que um dia após o outro”, ela disse.
Eles se despediram.
12 de junho de 2024, dia de namorados.
Esta narrativa é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com pessoas, eventos ou
situações reais é puramente uma coincidência ou um adjetivo.
Renata Satller do Amaral é psicanalista e professora universitária. Sua investigação
acadêmica objetiva conceituar o amor em psicanálise, artes, literatura e filosofia. Esta coluna
inaugura seu ensaio com as letras, fazendo bordas e promovendo horizontes para além dos
termos. Contato: renatasatller@gmail.com
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Postado por Nathália Coelho, no dia 13/06/2024 - 19:20