Na edição da semana passada, escrevi sobre a censura sofrida por Galvão Bueno por não ficar calado na largada de uma das provas da natação, durante as Olimpíadas Rio 2016. Citei o fragmento da crônica Escutatória, de Rubem Alves. Agora estou trazendo uma primeira parte dela. É uma de tantas outras belas crônicas deste pensador e educador.
"Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular.
Escutar é complicado e sutil. Diz o Alberto Caeiro que "não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma". Filosofia é um monte de ideias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas. Aí a gente que não é cego abre os olhos. Diante de nós, fora da cabeça, nos campos e matas, estão as árvores e as flores. Ver é colocar dentro da cabeça aquilo que existe fora. O cego não vê porque as janelas dele estão fechadas. O que está fora não consegue entrar. A gente não é cego. As árvores e as flores entram. Mas ? coitadinhas delas ? entram e caem em um mar de ideias. São misturadas nas palavras da filosofia que moram em nós. Perdem a sua simplicidade de existir. Ficam outras coisas. Então, o que vemos, não são as árvores e as flores. Para se ver é preciso que a cabeça esteja vazia.
Faz muito tempo, nunca me esqueci. Eu ia de ônibus. Atrás duas mulheres conversavam. Uma delas contava para a amiga os seus sofrimentos. (Contou-me uma amiga, nordestina, que o jogo que as mulheres do nordeste gostam de fazer quando conversam umas com as outras é comparar sofrimentos. Quanto maior o sofrimento, mais bonita é a mulher e a sua vida. Conversar é a arte de produzir-se literariamente como mulher de sofrimentos. Acho que foi lá que a ópera foi inventada. A alma é uma literatura. É nisso que se baseia a psicanálise...) Voltando ao ônibus. Falavam de sofrimentos. Uma delas contava do marido hospitalizado, dos médicos, dos exames complicados, das injeções na veia ? a enfermeira nunca acertava ? dos vômitos e das urinas. Era um relato comovente de dor. Até que o relato chegou ao fim esperando, evidentemente, o aplauso, admiração, uma palavra de acolhimento na alma da outra que, supostamente, ouvia. Mas o que a sofredora ouviu foi o seguinte: "Mas isso não é nada..." A segunda iniciou, então, uma história de sofrimentos incomparavelmente mais terríveis e dignos de uma ópera que os sofrimentos da primeira.
Parafraseio o Alberto Caeiro: "Não é bastante ter ouvidos para se ouvir o que é dito. É preciso também que haja silêncio dentro da alma." Daí a dificuldade: a gente não aguenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer. Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração e precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor. No fundo somos todos iguais às duas mulheres do ônibus. Certo estava Lichtenberg ? citado por Murilo Mendes: "Há quem não ouça até que lhe cortem as orelhas. ?Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil da nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos...".
Talvez a questão nem seja se sentir mais bonito, mas mais importante e superior aos outros. Isso pode ser visto nas reuniões de professores. É impressionante como um atropela a fala do outro, sem a "descansada consideração", conforme diz Rubem Alves nesta primeira parte de sua crônica.
No fundo somos mesmo como as duas
senhoras que Rubem menciona: insatisfeitos com o que vivemos ainda queremos que
nosso sofrimento seja mais importante que o dos outros, quando o maior
sofrimento por não termos a sabedoria de saber escutar.
José Antônio dos Santos
Mestre pela UFSJ
Contato: joseantonio281@hotmail.com
Fonte: http://rubemalves.com.br/site/10mais_03.php Acessado aos 20/08/2016. In: Correio Popular, 09/04/1999.
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Escrito por Educação, no dia 02/09/2016